Série A CORRENTE:
(Leia Antes: Prólogo, Capítulos: 1, 2)
Ele olha para baixo, esperando encontrar a menina jogando amarelinha no lugar onde a viu antes, mas nem riscado o chão está.
Roberto contempla um prédio de cinco andares desses conjuntos habitacionais de baixa renda.
Olha-o com certo temor e sabe o porquê. É o mesmo prédio com que sonhara.
Ao se aproximar do portão, que abre sem que o toque, Roberto percebe que
não está andando, mas simplesmente flutuando em direção à porta de
acesso do prédio. Uma peculiaridade deste imóvel é que ele pouco se
parece com o que Roberto sonhou anteriormente. Suas escadas estão
limpas, todas as paredes pintadas de areia e com alguns avisos do
condomínio sobre a conservação do local.
Ainda flutuando sem controle sobre o que lhe transporta, avança rapidamente pelas escadas, chegando ao segundo andar.
Sua mobilidade já parece recuperada e ele caminha em direção à porta do
apartamento 201. Roberto a encara e se pergunta se vale a pena abri-la.
Apesar de não saber o que faz ali, conhecia o bastante daquele
apartamento para não querer pôr os pés lá de novo, nem se ele estivesse
revestido com ouro.
Pensa em dar meia volta e, segundos depois, o faz. Mas eis que ouve às suas costas a porta se abrir.
– Finalmente chegaste, homem!
Roberto empalidece, estático. A voz masculina vinda da porta
recém-aberta não era gutural ou sussurrada o bastante para lhe dar medo e
veio acompanhada por com uma música infantil de Atchim e Espirro.
– Ei, é aqui mesmo, cara! Andou bebendo?
Roberto recusa a se virar. Ele não tem aqueles pensamentos de “morrer
como homem”, como o seu pai dizia. Seu instinto de sobrevivência é maior
que a sua coragem e dignidade e, se fosse para morrer, preferiria não
encarar a morte de frente.
Sente então uma mão pesada no ombro esquerdo.
– Vamos, meu rapaz! Estão todos te esperando! – diz o dono da mão
repousada no ombro esquerdo de Roberto, colocando a outra mão em seu
ombro direito, virando e guiando-o para a porta do apartamento 201.
A passos pesadamente curtos, Roberto caminha para a porta, pedindo a
Deus uma morte rápida e perdão por tudo o que fizera. Ele pede perdão
por se apropriar de senhas de clientes de bancos que invadiu, por
compras em cartão de crédito de terceiros, pede também perdão por
publicar fotos de suas ex-namoradas nuas na internet depois de terminar
com elas.
Ainda com os olhos fechados, Roberto atravessa a porta do apartamento,
sentindo uma mudança de iluminação. O local cheira a pó presente nas
bexigas, usadas em decoração de aniversário, além de gordura vegetal. A
música de Atchim e Espirro aumenta a cada passo. Arrisca uma pequena
levantada da sobrancelha, acompanhada com a pálpebra logo abaixo dela,
abrindo o olho o bastante para ver os vultos que estão na sala vindo em
sua direção.
Roberto ainda não foi atacado como esperava. Vendo que nada aconteceu,
abre os olhos e se depara com uma pequena comemoração com salgadinhos,
refrigerantes, docinhos e um bolo caseiro, coberto com glacê verde e
decorado com duas velas nas formas dos números 1 e 3.
O apartamento está decorado com bexigas coloridas, motivos comemorativos
de aniversário e algumas crianças rindo, revezando-se entre as
brincadeiras e os ataques a docinhos e salgados. Ao fundo da sala, o
acesso à cozinha é fechado por uma cortina e podem ser vistas silhuetas
de senhoras preparando comes e bebes.
Mas o que chama a atenção de Roberto são as condições do apartamento.
Está limpo, com uma decoração simples, mas muito aprazível. O chão traz
um tapete com traços bem trabalhados, massacrado por bolos e sapatos
sujos de crianças.
– Sônia, olha quem eu achei perdido no corredor! – diz o anfitrião –
Parece que bebeu antes de chegar e esqueceu o caminho. Mas a culpa é
minha. Falei para ele que a festa era infantil e que não teria bebida
alcoólica.
– Que boa surpresa – diz Sônia, de frente para Roberto, sorrindo. – Ela vai adorar saber que você veio!
Roberto olha para Sônia e reconhece a mulher com seus trinta e tantos anos. É a mesma da foto do corredor.
– Ela quem? – diz, dirigindo-se a Sônia, ainda com certo espanto com a situação.
– A sua amiguinha, oras! – diz o homem que ainda segura os seus ombros,
girando-o meia volta, deixando-o de costas para a Sônia e de frente para
ele. – Ela se aprontou o dia inteiro para você!
Roberto encara-o com pavor. Ele está frente a frente com o senhor negro
de bela aparência, com seus quarenta e poucos anos, algumas mechas de
seu cabelo seco levemente manchados de cinza e entradas nas laterais do
topo da cabeça. O mesmo que, outrora, como um cadáver vivo em avançado
estado de putrefação, pedira-lhe menos barulho para não acordar a
garota.
– Se aprontou, é? – diz Roberto, tentando arrancar mais informações sobre a menina e o que ele faz ali.
O senhor negro franze a testa. Está desconcertado com o total desconhecimento de seu visitante.
– Se aprontou é modo de falar, né? A enfermeira a aprontou, mas foi ela
que escolheu o que queria vestir para te ver! – explica, sentindo-se
constrangido, mas obrigado a dizer isso.
– Jorge, por que não o leva para vê-la? – sugere Sônia ao marido,
colocando os pratos plásticos com garfos das mais variadas cores pela
mesa, vez ou outra batendo na mão de alguma criança que eventualmente
tenta pegar um docinho. – Estamos terminando de preparar a mesa aqui e
logo a traremos, mas se você não quiser esperar...
– Eu espero – diz Roberto, prontamente. – Não precisa se incomodar.
– Mas eu insisto! – Jorge coloca novamente as mãos em seus ombros, guiando-o em direção ao corredor. – Aliás, ela insiste!
Roberto caminha à esquerda da sala em direção ao corredor, passando
próximo à janela. Ele olha para baixo, esperando encontrar a menina
jogando amarelinha no lugar onde a viu antes, mas nem riscado o chão
está.
Ele segue com um pouco de resistência, sem que Jorge perceba, pelo
corredor que já visitara e que, desta vez, tem um cheiro agradável. As
paredes decoradas com desenhos feitos em folhas de papel sulfite, giz de
cera e grafite, mas com certa precisão. O chão coberto por uma imitação
de um longo tapete importado com motivos orientais.
Avançando corredor adentro, Roberto vê rapidamente a moldura que analisara da última vez.
Percebe que falta a foto da mulher com o bolo, havendo apenas a que
retrata Jorge com sua filha. Deduz que, se ainda não foi, aquela foto
será tirada hoje. Ver o retrato faz a mente de Roberto retroceder ao
momento que encara o cadáver vivo de Jorge.
– E-eu não vou lá!
– O que é isso, parceiro? A pequerrucha quer te ver! – diz Jorge,
apertando um pouco mais do que amigavelmente as espáduas do rapaz.
– M-mas e-eu não quero! – Roberto empurra o corpo para trás, indo contra
as mãos de Jorge. – Tenho medo de não gostar do que vou encontrar lá!
Ao terminar de falar, Roberto sente o ar daquele apertado corredor
putrefar, os desenhos que os cercam nos corredores e a imitação de
tapete importado transformarem-se em cinzas, trazendo à tona uma fumaça
densa e venenosa. Ele vê o limo e a sujeira voltar a tomar conta do
lugar, tornando-se exatamente como vira antes.
Roberto sente as mãos de Jorge esquentarem sobre as suas espáduas e o
hálito abrasado em sua orelha. Ele não se vira para olhar, mas sabe que
Jorge voltou à forma que o vira pela primeira vez, com todos os seus
cruéis e inesquecíveis detalhes.
– Não será muito diferente do que encontra aqui, meu rapaz!
Roberto acorda num grito.
Olha para todos os lados, apavorado, e estranha o silêncio.
Deitado numa cama com lençol branco e sem qualquer detalhe, apoia-se
sobre os cotovelos, tenta se levantar, sente uma fisgada na barriga e
cai de costas no colchão ortopédico.
Inclinando agora apenas a cabeça para frente, contempla o pequeno
ambiente em que se encontra: um armário, à sua direita, um frigobar
estacionado à esquerda, entre a cama e porta. O ambiente impessoal
demais até para um quarto de hotel leva Roberto a suspeitar que está em
um hospital. Ao ver – e sentir – cravada em seu braço esquerdo uma
agulha, ligada a um soro, suas dúvidas cessam.
O que não nota de imediato é que tem companhia. Do seu lado direito, uma
garota com seus 23 anos, um pouco mais clara que ele, aperta-se numa
poltrona, ao lado de uma TV de 14 polegadas sustentada por um pequeno
rack, com a cabeça repousada no braço do móvel, tendo uma bolsa como
travesseiro.
Ele a reconhece prontamente. É Lídia, sua amiga. Ela mora em André
Carloni, na Serra, cidade vizinha a Vitória e é muito companheira. Mas
ela já foi mais do que isso. Ela já foi sua namorada. Ela ainda é a
mulher da sua vida.
– Líli? O que está fazendo aqui? O que eu estou fazendo aqui? – diz, olhando para ela e, em seguida, para a sua barriga.
– Você sofreu um acidente – responde, passando as mãos nos olhos e arrumando-se na poltrona.
– Parece que caiu sobre aquele abajur horrível que eu cansei de te falar
para tirar do corredor. Fui avisada pelo seu irmão. Ele soube por seus
vizinhos, que te ouviram gritando... Você devia tomar mais cuidado, viu?
Ela não para de falar e isso só faz Roberto se lembrar dos motivos que
levaram ao fim do namoro de oito meses. O relacionamento acabou, mas a
amizade, bem mais antiga, continua.
Roberto e Lídia se conheceram numa das famosas festas organizadas pelos
alunos de artes da Universidade Federal do Espírito Santo, em 1998.
Segundo amigos, não havia lugar mais fácil para se conseguir mulher.
Estava fora do seu habitat natural naquele lugar, pessoas em sua volta
fumando baseado e mulheres, algumas de seios de fora, pregando liberdade
artística.
Ele se sentiria no céu se fossem apenas seios de fora.
Até que ela apareceu: uma morena clara de cabelos castanhos, que poderia
até se passar por uma pessoa normal se não tivesse aquelas mechas rosas
ridículas. Seus olhos carregavam pesadas sombras púrpuras e eram
delineados com lápis menos chamativos que seus lábios revestidos por um
batom azulado, o mesmo traço dos olhos. Suas orelhas levavam tanto aço –
cerca de oito argolas cada uma – que a fariam parar dezenas de vezes em
detectores de metais presentes nas entradas de bancos e aeroportos.
Sua jaqueta jeans surrada protegia seu corpo quase nu, tendo apenas uma
tira de lycra na altura seus seios, mostrando que, para a infelicidade
de Roberto, ela não fazia parte do grupo que pregava a liberdade
artística. Sua calça da mesma cor da jaqueta – e tão gasta quanto –
abrigava generosas pernas e quadris que fariam qualquer um daquela festa
torcer o pescoço para olhá-la, se não estivesse tão cheio de maconha.
Ela vinha equilibrada numa bota preta com um salto de quatro
centímetros, que gritava em alto e em bom tom o quanto precisava de uma
boa engraxada. Mesmo assim, portava-se magnificamente bem. Carregava
também um cigarro Belmont, muito comum entre os menos abastados
financeiramente. Naquela época, ele não suportava o maldito fumo, mas
era algo totalmente ignorado naquele ambiente regado a canabis.
Roberto nunca notara tantos detalhes assim numa garota.
Ficaram amigos e, depois de tentarem se relacionar com terceiros e
confessarem suas mágoas a cada decepção um para o outro, começaram um
namoro, que terminara oito meses depois.
Encararam a realidade naturalmente: eram melhores confidentes do que amantes.
O saldo desta aventura para Roberto foi a amizade de Lídia e seu vício por cigarros.
Agora ele lembra quais motivos o fizeram apaixonar-se por ela.
– Que bom que você veio, Lídia. Não sei como agradecer.
– Ah, deixa disso. Você sabe que daqui a algum tempo estará falando com
uma enfermeira formada! Mas se quer me agradecer mesmo, é só não
publicar aquelas minhas fotos na internet, Beto. – diz, com a testa
franzida, mas com um sorriso meio torto para direita.
– Nem pensei nisso! – responde Roberto com um sorriso sacana. – Aquilo é só para o meu deleite!
Em seguida, Roberto olha para o seu abdômen enfaixado e seu rosto muda. Com o sorriso desmanchado, encara Lídia, sem piscar.
– Eu achei que ia morrer. Eu me vi sangrando, me arrastei até a sala e,
quando tudo escureceu, pensei que ia morrer mesmo. – diz, abalado. Nunca
esteve tão perto de morrer.
Também nunca teve pesadelos tão assustadores, tão reais. Esta observação, contudo, ele guarda para si.
– É... Poderia ter morrido mesmo – Lídia escolhe as palavras. – Foi muita sorte os bombeiros estarem no apartamento ao lado.
– Bombeiros? O que os bombeiros estavam fazendo lá? Da dona Vilma? N-não vai me dizer...
– Calma, Beto! Não faz esforço! – Lídia tenta tranquilizá-lo. – Parece
que o alarme de incêndio do apartamento do André foi ativado. É o seu
vizinho da esquerda, lembra? Aquele que...
– O dançarino! – interrompe Roberto, falando entre os dentes com um certo desprezo, entortando levemente a boca para a direita.
– É esse mesmo. Parece que houve um problema na parte elétrica do
apartamento dele, mas eu não posso garantir nada porque eu não estava
lá! Quem te socorreu foram os vizinhos. Seu irmão só soube do acidente
quando você já estava em operação. Aí ele me pediu para ficar aqui e...
– Roger não apareceu para me visitar? – Roberto sente-se insultado.
– Você sabe como ele é, não é Beto? Depois da morte da mãe de vocês, não quer mais saber da família.
Roberto olha para Lídia, chateado. Ele nunca foi de apreciar o convívio
familiar, pois seu pai o deixara, assim como a três irmãos e uma mãe
doente. Porém, sempre buscou notícias do seu irmão mais velho que,
expulso de casa ainda cedo, aos treze, teve que aprender a se virar
sozinho. Quando Roberto conseguiu se assentar na vida, tentou ajudar
Roger e sua mãe, que pereceu de desgosto com a morte de Reginaldo, o
mais novo dos irmãos.
– Mas ele devia ter aparecido – finaliza Roberto.
– Eu apareci. Não conto? – brinca Lídia, sentando-se na cama. Suas mãos
se preparam para acariciar os curtos cabelos de Roberto, que nada
responde.
– Ahn... Vamos ver o que está passando na TV? – Lídia pega o controle
remoto do lado da cama, tentando mudar o clima da conversa. Coloca no
canal 19, uma transmissora local.
– Você precisa é de um pouco de entretenimento e... Oh! Acabou Tom e Jerry! – diz Lídia, chateada.
– Deixa aí, Líli. Vai começar o jornal! – Roberto toma o controle remoto de Lídia.
– Vai, engole esse controle!
Lídia então repousa as costas no travesseiro de Roberto, tentando
acomodar-se da melhor forma possível para assistir ao noticiário local.
Os dois observam atentamente a dupla de apresentadores, sentados atrás
de um grande balcão de metal, olhando insensíveis para eles, noticiando
com detalhes mais um sórdido dia de violência no estado do Espírito
Santo:
Apresentador: – Boa Noite.
Apresentadora: – Madrugada violenta em Vitória. Três pessoas morrem em acidente na avenida Fernando Ferrari!
Apresentador: – Estudante leva três tiros, mas sobrevive.
Apresentadora: – Assaltante é encontrado morto em Vila Velha. A polícia desconfia de linchamento por parte dos moradores.
Apresentador: – Professor de dança é encontrado morto em apartamento em Mata da Praia. A polícia desconfia de assassinato.
Outras notícias foram anunciadas antes da apresentação da vinheta do
programa, mas tanto Roberto quanto Lídia as ignoram completamente. Eles
se olham, apáticos por longos segundos e o silêncio é quebrado:
– Mata da Praia? Será o André? Meu vizinho morreu?
Roberto sente um calafrio passear pela sua espinha. Em outra ocasião,
ele fingiria estar sentido e, depois de alguns dias, faria uma
silenciosa comemoração. Nunca gostou do vizinho e invadia a sua caixa
postal eletrônica frequentemente.
Mas os pesadelos que o atormentaram desde a madrugada passada o deixaram
muito sensibilizado e ele sente, de alguma forma, que algo está
terrivelmente errado.
No próximo capítulo:
“O último caso de alguém que quebrou a corrente é de uma atendente de uma pequena locadora.”
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