sábado, 13 de julho de 2013

A CORRENTE Capítulo 5 - Estevão Ribeiro

Série A CORRENTE:
(Leia Antes: Prólogo, Capítulos: 1, 2, 3, 4)






Roberto tenta descobrir como a imagem de seu vizinho morto veio parar em sua caixa postal. 



Dois dias depois do incidente que lhe rendera um abdômen costurado, Roberto recebe alta. Acompanhado de Lídia, volta tarde da noite para o seu apartamento de número 401 no edifício Éden, Mata da Praia. Na entrada de seu imóvel, pago por pequenos numerários desviados de contas bancárias de infelizes e despreparados usuários de internet, Roberto olha para a porta do apartamento de André, seu finado vizinho.
Não há nenhuma faixa amarela e preta de interdição. Quem chegasse ali agora, nem perceberia que há dois dias aconteceu um assassinato.
– Suicídio. – diz Lídia a Roberto, tomando-lhe a chave.
– O quê?
– A polícia estuda a hipótese de André ter se matado.
– Será? Eu conheci André, e ele não me parecia um desses caras com crises existenciais, que sonham em se matar.
– Esses que são os piores. – Lídia entra no apartamento. Roberto, logo atrás, hesita em dar o passo necessário. Por um momento, lembra do que viveu neste lugar, que até então tinha como lar.
A porta do apartamento se move lentamente num ameaçador ranger de dobradiças. Ouve Lídia murmurar o seu nome enquanto estende a mão com dificuldade, tentando alcançar a porta antes que feche.
A fisgada na barriga atrasa Roberto e a porta fecha. Ele pragueja, toca na maçaneta e, antes que pudesse girá-la, as luzes do corredor se apagam.
Roberto observa o local tomado pela parca iluminação das frestas dos outros apartamentos e só volta a atenção à sua própria porta quando percebe que está sendo trancada. Depois, vêm os gritos.
– Beto! O que tá acontecendo? Para de brincadeira, porra!
Ele força a maçaneta, desesperado.
– EU? Você é quem está com a chave! Abre isso, menina!
– Eu estou tentando! Tira a mão da maçaneta e fica calmo. Deve ter sido o vento.
– Tá, tá.
Roberto se silencia no corredor mal iluminado e todo o lugar parece esperar uma resolução de Lídia para poder revidar com algo terrivelmente ruim.
O silêncio que impera e a ausência de qualquer sinal de vida nos apartamentos deixam o ar pesado. As luzes nas frestas das portas não estão entrecortadas por pessoas se movendo. Nada acontece. Tudo ali parece morto.
Algo mexe dentro do apartamento de Roberto. O proprietário, no corredor, reconhece o barulho da chave escorregar para dentro da fechadura, ser girada para a esquerda e para direita, ser tirada e novamente colocada, repetindo-se várias vezes o movimento, ora alternado com giradas e forçadas da maçaneta.
– Droga! – diz Lídia, tão baixo que parece falar consigo mesma.
– O quê?... O que foi, Lídia? Diz alguma coisa, Lídia! Que foi?
– Calma! Você está me deixando nervosa! A chave agarrou na fechadura e não quer virar! Mas relaxa que eu dou um jeito.
– Tá bom, tá bom.
Roberto ouve mais uma girada na maçaneta, mas não parece vir de sua porta.
– Lídia? Lídia?
Ouve mais uma girada de maçaneta e percebe nitidamente que não é da sua porta.
– Lídia? Você está aí? Responde, porra!
– Falei para você se acalmar, rapaz? Fui pegar um alicate no armário para forçar a chave.
– Não foi você quem mexeu na maçaneta agora, não?
– Eu estava na dispensa, Beto!
Roberto então olha para a porta de seu finado vizinho. A maçaneta gira suavemente para um lado e para o outro. Custando a acreditar devido à má iluminação do local, ele a toca.
Roberto sente a maçaneta gelada.
Ao sentir seu toque, a peça de metal gira ferozmente, como se o que está preso naquele lugar quisesse sair para pegá-lo. Os olhos de Roberto acompanham o movimento da maçaneta, agora acompanhado de bruscos empurrões contra a porta, com pavor indescritível. Golpeia a entrada de sua casa, desesperadamente.
– Abre esta porta, por tudo que é mais sagrado! – berra Roberto, ignorando a dor dos pontos no abdômen. – Ele quer me matar!
A maçaneta ao lado gira cada vez mais forte e então para.
Não ouvindo mais Lídia do outro lado, Roberto encosta-se à parede e chora compulsivamente, aguardando o motivo de seu pânico sair do apartamento de seu falecido vizinho.
Fecha os olhos com força, fazendo as lágrimas jorrarem pelo seu rosto e grita.
– Roberto? – diz Lídia, ao pé da porta, vendo-o agachado perto da parede do outro lado. – O que está acontecendo?
– Hã? – Roberto olha para frente e vê Lídia. Luz estabelecida, tudo normal. Então levanta com dificuldade, dirigindo-se à amiga. – Por que demorou tanto? Eu podia ter morrido!
– Do que você está falando? A porta bateu, eu ouvi você gritando e quando eu abri a porta, você estava aí, no chão, igual a um bebê chorão!
– Bebê chorão? Você é que não sabe nem abrir uma porta! Você se enrolou com as chaves e demorou um tempão para abrir essa droga!
– Você está doido, Roberto! A porta fechou, eu ouvi o seu grito e voltei. Abri, vi você sentado no chão. Além do mais... – diz Lídia, apontando para a maçaneta que Roberto forçava. –... a chave ficou ali!

No bairro Campo Grande, em Cariacica, localizado ao sudoeste de Vitória, mora Gésser. Conhecido de Roberto dos tempos de garoto, ele perdeu o contato com o menino que agora ganha a vida invadindo computadores e roubando contas.
Quando muito, comunicam-se por e-mails que sempre terminam com a frase: “devemos marcar um dia para tomar uns birinights”. Como com Leda, mas nesse caso os dois usam a mesma despedida, ninguém marca, ninguém vai e tudo fica como está.
Talvez não queiram mesmo se ver. A amizade de infância não perdura quando as pessoas tomam rumos diferentes. Apesar de Gésser adorar internet, ele prefere vê-la como utensílio de consumo para baixar filmes e mp3.
Nesta madrugada, Gésser está baixando músicas do Pé do Lixo, banda há muito atuante no estado. Ele poderia comprar o CD, não custa mais do que uns trocados que hoje ele pode pagar. Mas prefere economizar. Gésser se acha um gênio baixando músicas disponibilizadas por algum desocupado. Economiza quinze reais do CD, mas gasta quatro mil e trezentos com o equipamento de som do carro.
Enquanto espera as músicas serem copiadas da internet para a pasta D:/músicas/pedolixo/ de seu computador, Gésser checa o e-mail. Entre as mensagens de colegas de serviço, encontra uma mensagem de Bruna.
Na linha de assunto, a mensagem traz a frase “Uma piadinha para alegrar a vida”.
Mesmo sem conhecer a remetente, Gésser abre a mensagem.

Veja como essa velhinha é esperta:

Um agente da alfândega vê uma velhinha passar com a sua motoneta pela fronteira diariamente. Ora ela passa trazendo um grande saco de pano e ora ela volta sem o saco.
O agente já a havia parado algumas vezes, ora com um detector de metais, ora com um cão treinado para farejar drogas. Agora o agente resolveu olhar o que tem no saco com os próprios olhos.
– Alto lá, vovó!
– Que foi, meu filho?
– Quero saber o que a senhora traz nesse saco.
– Neste aqui? – diz a velha, abrindo o saco.
– Esse mesmo.
– Areia. – diz a velha, enfiando a mão dentro do saco e trazendo consigo um punhado de areia fina.
O agente vasculhou o saco e não encontrou mais nada, a não ser areia. Desolado, ele a liberou e ela continuou a passar por ali diariamente.
Mas ele sabia que havia algo errado: ela estava contrabandeando algo e o agente não aguentava mais de curiosidade. Dirige-se então à velhinha:
– Olha aqui, vovó! Eu sei que a senhora está contrabandeando algo. Eu a vejo todos os dias passar por aqui e sei quando alguém está escondendo o jogo. Eu juro pelo o que é mais sagrado que eu deixo a senhora continuar com o seu negócio, mas, por favor, diga-me o que é, pois a curiosidade está me matando!!!
A velhinha olha para os lados, procurando testemunhas e, não encontrando nenhuma, dirige-se ao agente.
– Você jura pela sua mãe que não vai me impedir de continuar passando por aqui se eu lhe contar o que eu contrabandeio?
– Juro.
– Pela sua mãe?
– Eu juro, droga! Diz logo!
Então a velha leva sua boca de encontro ao ouvido do agente, enquanto faz uma parede com a mão.
Ele ouve e arregala os olhos.
Para saber o que a velhinha estava contrabandeando, mande esta mensagem para sete amigos seus que a resposta lhe virá quando seu sétimo amigo receber a mensagem.
Agora, se você não mandar, ela lhe trará má sorte e você se arrependerá. Mas como consolo, saberá a resposta.

– Ah, droga! – diz Gésser, frustrado. – É muita sacanagem alguém mandar uma piada sem o final.
Gésser deleta a mensagem e vê que seu computador fez o download das músicas do Pé do Lixo. Pega seu pen drive e grava todas que baixou. Seu rosto de felicidade se misturava com um semblante de menino que estava fazendo algo feio às escondidas e gostava disso. Terminadas as tarefas, pôs-se a dormir.

Sete horas da manhã e Roberto está na cama, sem camisa, olhando para o ventilador de teto há horas. Ele tem o abdômen envolto por ataduras, consequência do ferimento.
– Ué? Você não dormiu? – diz Lídia, à porta.
Suas olheiras o denunciam. Roberto não pregou os olhos a noite inteira.
– Olha, eu vou à padaria comprar uns pães.
– Tudo bem. – responde o rapaz, levantando-se com dificuldade. – Vou dar uma olhada na internet.
– Tão cedo? Além do mais, você está machucado.
– Mas estou há dois dias sem trabalhar. Você sabe como eu ganho o meu dinheiro.
– Acho que você devia mudar de vida, Beto. O Plínio mudou depois daquele golpe sujo. Pelo menos, valeu pra isso – diz Lídia, saindo do quarto.
Roberto não esquece o que viu – ou sonhou que viu – naquele quarto, mas tenta fazer a mente aceitar que era apenas fruto de sua imaginação criativa ou, quem sabe, excesso de trabalho. E como foi obrigado a tirar dois dias de folga, acha que tudo voltou ao normal.
Entra no escritório e liga o computador, que lhe recepciona com uma foto sua e de Lídia no papel de parede.
Acessa a internet e entra em sua caixa postal. Para o seu espanto, vê que está vazia. Nem mesmo a mensagem que ele encaminhara para outras sete pessoas estava lá.
Então pensa em André. Na coincidência, ele ter mandado uma mensagem de uma menina morta para um cara que se matou – ou morreu – horas mais tarde.
Roberto clica em Itens enviados. Seu sangue para de circular pelo corpo por um segundo. A barra de progresso da janela do Internet Explorer é carregada lentamente, até chegar a cem por cento.
Quando a tela é carregada, visualiza os sete endereços para quem mandou aquela mensagem:

alobato@superlink.com
cinderel@beta.com.br
gesserjr@superlink.com
ingrid.gatinh@master.com.br
jason13@yaman.com.br
keyman@dominiosmatrix.com.br
lilitop@liliworld.com

Roberto percebe que os dois primeiros endereços estão sublinhados e com a coloração vermelha. Já o terceiro endereço encontra-se apenas com parte sublinhada, anterior ao símbolo “@”, e com a mesma cor dos primeiros.
Intrigado com o fato, clica no endereço de André – o primeiro para quem mandara a mensagem. Uma nova janela se abre. Roberto vê a barra de download chegar de zero a cem por cento em segundos.
Uma imagem é despejada na tela. É André, sentado em sua cadeira, com sua cabeça dentro do monitor do computador. O fato de Roberto ter visto esta cena anteriormente não a torna menos chocante.
– Oh, meu Deus! – a voz abafada com a mão na boca para conter seu grito, vômito ou qualquer coisa que possa sair dela. – O que esta imagem está fazendo aqui?

Em Cariacica, Gésser entra e fecha a porta do seu Escort prata. O carro é de 1995, mas vale ouro. O vendedor de cozinhas planejadas orgulha-se de tê-lo transformado numa potente boate sobre rodas. Investindo, num período de dois anos, um total de quatro mil e trezentos reais em módulos, alto-falantes, twisters e cornetas, ele tem o melhor som do seu bairro, mas está longe do seu sonho de consumo.
Ele sonha em ter uma tela de cristal líquido ocupando toda a porta traseira para que, quando ela esteja levantada, ele e os amigos possam curtir um som vendo clipes em qualquer lugar. Mas tem que deixar esse sonho de lado e ir para o trabalho, pois já se atrasou demais.
Munido com as músicas pirateadas do Pé do Lixo, segue pelas ruas de Campo Grande em direção a Vitória, seu local de trabalho. Gésser zapeia entre as faixas e acha a sua predileta, cuja letra fala sobre políticos que prometem o paraíso para seus eleitores. A letra de protesto saída dos altofalantes bombardeia os ouvidos de Gésser. Ele se sente numa boate celestial e assim prossegue.
Mãos trêmulas se dirigem ao teclado e mouse do computador. Roberto tenta descobrir como a imagem de seu vizinho morto veio parar em sua caixa postal. Ele revê a Itens enviados e só encontra dados relacionados ao seu computador, como se aquelas mensagens tivessem sido geradas de sua máquina.
– O que está acontecendo? – e chega a uma conclusão. – Alguém quer me incriminar! Tenho que apagar essas mensagens!
Roberto clica na mensagem de André e no botão Excluir.
Nada.
– Que droga – Roberto dirige-se ao endereço de correio eletrônico cinderel@beta.com.br, clicando nele em seguida. – Será que só esse e-mail está dando pau desse jeito?
Uma nova janela se abre. A barra de progresso do Internet Explorer começa a trabalhar novamente. Quando termina de carregar, eis que aparece uma imagem captada pelo circuito interno da Filmagia Locadora: Leda, velha amiga de Roberto, jaz no chão de olhos congelados, boquiaberta num pavoroso ensaio de um grito que nunca saiu, pois o seu pulmão encontra-se preso na caixa torácica, separado por cinco milímetros de vidro temperado de sua cabeça, porta de entrada e saída do terror.
Roberto não a reconhece imediatamente, mas isso não minimiza o seu pavor. Ele grita, fecha os olhos alagados e os esfrega. Quando liga a pessoa ao seu endereço de correio eletrônico, desaba.
– Oh, meu Deus! Eu mandei um e-mail pra Leda e ela morreu, assim como o André.
Um frio percorre sua espinha. O que aconteceu com André e Leda pode ter a ver com os e-mails que ele enviara. Maximiza a tela de Itens enviados e desliza o cursor do mouse sobre o terceiro endereço da lista. Gésser.

Subindo a ponte que liga Cariacica a Vitória, Gésser segue para o seu trabalho, cantando trechos de A Terra Prometida.

Ele sempre me falou
da Terra Prometida
E eu nunca via nada, nada, nada
da Terra Prometida

Mas a sua péssima performance como cantor é interrompida pela sineta em tom de Missão Impossível do seu celular. Não que esta apenas bastaria, pois com o som que ele instalara no carro era impossível ouvir o próprio pensamento – o vibracall do minúsculo aparelho de telefonia móvel se fez necessário.
– Alô?
– Junim?
– Quem... Betão? Fala, cara! Porra, cê demorou pra ligar, hein?
– Tudo bem com você, Junim?
– Tô, cara. Por que você está falando assim?
– Eu estou meio ruim. Por acaso você recebeu algum e-mail meu por esses dias?
– Esses dias? Betão, tô pra te dizer que não. Eu não me lembro. Era piada?
– Não. Era besteira, acho.
– Ah, falando de internet, cê que saca tudo, procura pra mim uma piadinha sobre uma velhinha traficante.
– Piada de velhinha?
– É. Sobre uma velhinha que trazia contrabando debaixo do nariz de um desses agentes de alfândega. Mas me mandaram a piada faltando o final.
– Tá, eu procuro, mas não pode ser pra agora não.
– Valeu, Betão! Quando você me mandar eu vou esfregar a resposta da velhinha na cara da menina que me mandou a piada incompleta.
– Pô! Mandar piada incompleta é fim de carreira – Roberto disfarça a aflição e o alívio em saber que seu amigo de escola está vivo e bem.
– A menina ainda escreveu no e-mail que, se eu passasse a mensagem para sete pessoas, ela me mandaria o resto.
– Uma menina lhe pediu isso?
– É. Uma tal de Bruna.
Roberto sente os joelhos falharem. Aperta o telefone contra a orelha como se o quisesse gravado em seu rosto. A parte de baixo de seus dedos, esbranquiçados, contornam o vão entre o ouvir e o falar com uma força nunca vista, enquanto suas unhas fazem da sua palma uma vítima desprotegida. Ele tenta formular algo para dizer ao amigo de escola, mas nada que lhe vem à cabeça parece convincente.
Ele percebe a voz falha de Gésser falando ao seu ouvido que a bateria do celular está fraca e que será obrigado a desligar.
– E o que você fez, Junim? Está me ouvindo, Junim?
Estas são duas perguntas para as quais Roberto não teria as respostas, pois a bateria do celular do amigo resolvera dar vantagem ao destino. Roberto pede a quem lhe ouvir no céu que seu amigo de escola não tenha o mesmo fim que o musculoso dançarino e a recepcionista da locadora.


Continua...

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