Aquela tarde havia sido cansativa. O dia todo havia sido cansativo, para falar a verdade,
mas a tarde havia sido especialmente corrida; coisa comum nos finais de
semana mas era algo ao qual Kevin ainda tentava se habituar. Tem sido
sempre assim desde que começara a trabalhar no mercado do seu tio a pouco mais
de um mês. Haviam apenas quatro ''grandes mercados''por assim dizer,
naquela pacata cidade em que vivia, e o mercado do seu tio Fillip era um
dos maiores e mais conhecidos pela população local.
O Bolichão do velho Fill, era como chamavam os
mais íntimos
- os velhotes, clientes a quase cinco décadas. Fillip não mantia muitos
empregados trabalhando consigo; eram apenas cinco, que se revezavam
entre o caixa, açougue, organização dos produtos, assistência aos
clientes, etc. O quinto empregado era o próprio Kevin, e sua tarefa era
chegar lá as seis e trinta da manhã para verificar se estava tudo em
ordem, e então preparar-se para abrir o estabelecimento as sete horas,
junto de seu tio. Trabalhava o dia inteiro, mas somente sexta e sábado,
pois eram dias em que o mercado precisava de mais um funcionário para
dar conta da clientela, e então domingo a tarde, reunia-se com o
restante do pessoal para fazer a faxina do local e a reposição dos
estoques; tudo sob a supervisão de Fillip. Trabalhar justamente nos
finais de semana podia não ser algo agradável, mas pelo menos o tio era
generoso na hora do pagamento. S$ 400,00 dólares mensais para trabalhar
três
vezes por semana? Era muito bom.
Kevin chegou
em casa, ergueu a
porta da garagem e entrou com sua bicicleta. Havia comprado-a semana
passada, quando recebeu o seu primeiro pagamento. Não havia saído
barato, mas quando viu a bike na vitrine, precisou leva-la. Era um
desses modelos novos com tudo que uma bicicleta foda precisa ter e, além
disso, Kevin tinha uma espécie de paixão por bicicletas,
apesar de
não coleciona-las(não havia lugar na casa mesmo); então assim que
comprou a nova, vendeu sua antiga pro filho do vizinho. Ao entrar, viu
que o carro não estava na garagem. ''Que estranho a mãe ainda não ter
chegado do serviço.'' pensou, e então escorou a bicicleta na parede.
Parou e olhou por um instante ao redor, franzindo as sobrancelhas; em
seguida deu um leve suspiro: a garagem estava uma tremenda bagunça. Mas é
claro que ele não iria fazer nada a respeito ''Não hoje, pelo menos.''
pensou consigo mesmo, então deu as costas e saiu, baixou a porta da
garagem e a trancou. Ele estava faminto, exausto e perguntando-se porque
seu tio não contratava mais um ou dois funcionários. Não era barato,
ele sabia, mas o mercado estava em ascensão e Fillip já havia passado
dos sessenta anos, não era mais um garotão, como dizia ser. ''Mas enfim,
pelo menos eu estou de
férias da faculdade
e posso vadiar de segunda a quinta.'' pensou em voz alta, com um
pequeno sorriso na cara. Observou a rua de sua casa, estava vazia.
Haviam três carros estacionados e, lá na esquina, dois cães atravessavam
tranquilamente pela faixa de segurança. Kevin riu. O Sol já estava
baixo, com aquele tom alaranjado no horizonte e algumas casas estavam
com as luzes de dentro e de fora acesas - incluindo as luzinhas de Natal
- contrastando com o tom laranja e azulado do fim de tarde. Kevin
suspirou, subiu os degraus da varanda e entrou em casa.
Acendeu a luz e, sem vontade alguma, apertou o interruptor que ligava as
luzes de Natal da casa dele. Aquele clima natalino não o deixava muito a
vontade. As pessoas felizes e aquela bobagem toda; Kevin nunca
conseguiu se sentir parte disso. O motivo era que, em dezembro de 1994,
seu pai havia morrido lutando contra as chamas de um incêndio de grande
escala, ocorrido nas montanhas de Brook Hills. O corpo de bombeiros da
cidade de Brook não estava conseguindo controlar as chamas e pediram
socorro as cidades vizinhas. Richard Miller era bombeiro a mais de dez
anos e, naquela
semana, saiu as
pressas de casa, prometendo retornar. Os noticiários locais mantinham a
população atualizada e sua mãe estava sempre grudada no sofá
acompanhando cada noticia. Quando tudo acabou, foram informadas as
mortes de dois bombeiros e um civil. Kevin tinha apenas quatro anos
quando isso aconteceu, mas a imagem dos companheiros de trabalho de seu
pai chegando a sua casa e de sua mãe chorando, nunca saíram de sua
cabeça. Seu pai morreu tentando salvar a vida do companheiro. Ele morreu
como um herói, foi oque disseram. Dia 17 de dezembro faria dezoito anos
que isso tudo ocorrera.
Kevin abriu a mochila e tirou dela uma caixa de leite, um pote de
achocolatado em pó e dois sanduíches prontos que havia trazido consigo
do mercado, em seguida os colocou na mesa da cozinha. Ouviu um barulho
distante, como algo caindo. - Mãe! - chamou, ninguém respondeu. ''Mas o
carro não esta na garagem...'' Retirou a embalagem plástica de um dos
sanduíches e o mordeu com vontade. De boca cheia e mastigando, saiu da
cozinha, subiu as escadas e foi até o quarto de sua mãe. - Mãe? - chamou
de novo, mas ao abrir a porta encontrou o cômodo vazio. A janela do
quarto estava aberta e uma brisa entrava por ela. Contornou a cama e foi
fecha-la, abaixando-se antes para juntar o porta retratos que havia
caído da cômoda. Na foto estava ele, sua mãe, sua vó e o cachorro da vó,
Cueca. Kevin foi quem deu o nome. Sua mãe e sua vó até protestaram por
um instante, mas não teve jeito, esse era o nome perfeito. O cachorrinho
era branco com manchas escuras, e uma dessas manchas contornava o
quadril e se estendia até a metade das coxinhas, lembrando uma cuequinha
box; o rabo ainda era todo branco, como se tivesse saído de um furo do
tecido. Todos achavam a maior graça. Kevin colocou o porta retratos de
volta no seu lugar e ergueu o pulso pra olhar o relógio; já eram quase
oito e meia. - Tu anda voltando tarde ultimamente hein mãe? Com certeza
ta namorando de novo. - A mãe estava mais perfumada de uns dias pra cá, e
Kevin havia encontrado uma rosa vermelha na mesinha da sala semana
passada, mas preferiu fingir não ter visto nada. O ultimo namorado durou
o que, uma três semanas?
Ao chegar em seu quarto, abriu o notebook e o ligou, mas sem nenhuma
vontade de entrar na internet. Sentou-se na cama, ainda terminando de
mastigar o ultimo pedaço do sanduíche. Havia um livro em cima do seu
travesseiro, ele o colocou pra um lado e então esparramou-se. Deu um
longo bocejo e sua visão embaçou. Esfregou os olhos e virou o rosto de
lado; lá fora já anoitecia. Deu outro bocejo e seus olhos foram pesando
cada vez mais enquanto observava o refletir das insistentes luzes de
Natal no vidro da janela. Adormeceu.
____________
Kevin acordou assustado e ergueu-se da cama depois de ter ouvido um
grito - ou pensar ter ouvido um grito. Esfregou os olhos, com certeza
havia sido só um sonho. Voltou a deitar e tirou o celular do bolso da
calça enquanto bocejava. Com os olhos lacrimejados de sono, olhou a hora
e voltou a levantar-se, dessa vez realmente assustado. Eram quase seis
horas da manhã! - Merda como foi que dormi tanto!? - Levantou da cama,
iluminando o caminho com o celular, pegou sua toalha de banho jogou-a no
ombro e abriu a gaveta de cuecas. Estava muito escuro. Apertou o
interruptor de luz, mas a luz não acendeu. ''Que merda, será que a
lâmpada queimou?'' Saiu do quarto e tentou acender a luz do corredor,
mas ela também não acendeu. - Ótima hora pra vocês cortarem a luz, seus
imbecis! - disse ele, imaginando que tipo de trabalho estariam fazendo
na rede elétrica a essa hora da manhã e em pleno sábado. O celular
apitou, a bateria estava fraca. ''Droga, essa não.'' Desceu e foi até a
porta que levava a garagem, apontando a luz do celular para os degraus
da escada. Havia uma lanterna ali em algum lugar. Foi até as prateleiras
procurar. Caixas vazias, ventilador estragado, teias de aranha, caixas
com entulhos... e a lanterna ao lado. - Beleza! - disse e voltou por
onde veio. Foi até o banheiro escovar os dentes, lamentando por não
conseguir enxergar-se no espelho e amaldiçoando os caras da companhia
elétrica. Tomou o banho mais rápido da sua vida - com a água gelada
mesmo - vestiu-se, arrumou o cabelo para trás e voltou até a sala,
estranhando aquela escuridão toda. Tornou a olhar seu relógio, ele
marcava 6:28, já deveria estar clareando lá fora. Foi até a porta,
abriu-a e saiu na varanda. Uma brisa gelada o atingiu e ele encolheu os
braços. Estava tudo muito escuro. O céu estava negro, não havia som
algum na rua, oque era ainda mais estranho, pois muita gente sai
trabalhar a essa mesma hora. Dois postes piscavam uma luz morta no fim
da rua. Kevin voltou para dentro de casa, fechou a porta e foi até o
quarto de sua mãe, ficando surpreso ao ver que ela não havia dormido em
casa - ele nem lembrou de perceber se o carro estava ou não na garagem.
Pegou seu celular para ligar pra ela e ficou pensativo por um instante,
quase desistindo, mas decidiu que ligaria. A chamada caiu na caixa
postal e as chamadas seguintes terminaram da mesma forma. Já eram 6:46.
Ele tentou evitar ao máximo, mas agora estava começando a ficar
assustado.
Subiu de novo até seu quarto e vestiu uma jaqueta. Tentou ligar para sua
mãe uma ultima vez, mas caiu na caixa postal novamente; isso já estava o
deixando bastante preocupado. - Droga mãe, atende... - respirou fundo. -
Tudo bem, ela esta bem e... - um grito fez ele se virar imediatamente,
pareceu ter vindo da rua. Kevin deu um pulo até a janela. Uma pessoa
cruzou correndo e caiu bem em frente a sua casa. Não dava para ver
direito devido a escuridão, mas... parecia ser uma mulher. Kevin podia
ouvi-la chorando e pedindo socorro. Estaria ferida ou coisa do tipo? Ele
estava prestes a descer para oferecer ajuda, mas algo aconteceu: uma
espécie de névoa negra, uma massa ainda mais escura que a própria
escuridão noturna foi envolvendo a moça aos poucos, enquanto ela se
arrastava e gritava por socorro; então a nuvem negra a cobriu por
completo, e os gritos foram abafados, até que não pode se ouvir mais
nada. Segundos depois o agressor desapareceu, misturando-se a escuridão.
Kevin cambaleou para trás, tentando não acreditar no que viu. ''O que
diabos foi aquilo!?'' Desceu correndo as escadas e observou pela janela
da porta. A moça estava caida no mesmo lugar e não havia sinal do
agressor. ''Mas oque foi aquilo que aconteceu!? O que era aquela
coisa!?'' Kevin estava com medo e não parava de pensar em sua mãe. Por
que não atendia o celular? Estaria segura? ''Meu Deus.'' Abriu a porta e
desceu a varanda, iluminando o caminho com a lanterna; o feixe de luz
focando tudo que parecia mover-se, porém, nada realmente se movia.
Quando ele chegou perto o suficiente da moça caída, a luz da lanterna
iluminou uma cena de horror: ela estava morta e em seu rosto pálido
estava estampada uma expressão de dor e agonia inimagináveis. Seu
abdômen e tórax estavam abertos e completamente vazios; havia sangue pra
todo o lado, mas nenhum órgão. Kevin colocou a mão na boca e virou o
rosto, tentando não vomitar. Com a mão trêmula, pegou o celular pra
ligar pra polícia, mas a bateria havia acabado. - Ótimo, mais essa
agora! - Gritou, olhando pra todos os lados. A luz da lanterna seguindo a
direção de seus olhos. O que era isto tudo!? O que diabos estava
acontecendo!? Ele estava em choque, a mulher estava morta e ele não
sabia oque fazer; até que um barulho chamou sua atenção, fazendo-o virar
imediatamente. Uma lata de lixo apareceu rolando a calçada. Kevin olhou
ao redor, sentindo-se observado. No fim da rua, aqueles dois postes
ainda piscavam fraco, lutando para se manterem acesos, até que ambos
estouraram, deixando a esquina em completa escuridão. Kevin voltou
correndo para dentro de casa, batendo a porta atrás de si.